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Aprova o regime de faltas justificadas ao trabalho por motivo de morte ou assistência a animal de companhia

Exposição de motivos

Os animais de companhia são cada vez mais vistos pelos portugueses como parte integrante do seu agregado familiar. Estudos demonstram que mais de 50% dos lares portugueses têm um animal de companhia e que este número tende a aumentar devido à alteração dos núcleos familiares e à noção de que os animais contribuem profundamente para o bem-estar físico e psicológico dos seus detentores e do próprio agregado familiar. Mais recentemente, um estudo da FEDIAF[1], estima que há pelo menos 4.616.000 animais de companhia, o que demonstra que a família é cada vez mais considerada como multiespécie. Para muitas pessoas que vivem sós ou em situação de vulnerabilidade social, os animais são inclusivamente, muitas das vezes, a sua única companhia.

Apesar desta realidade, não existe ainda no nosso ordenamento jurídico um quadro legal que permita faltar justificadamente em caso de morte do animal ou para prestação de cuidados médico veterinários urgentes ou inadiáveis.

No caso em particular da perda de animal de companhia, a dimensão do luto deve ser encarada como um direito pessoal e laboral do detentor, considerando os laços afetivos que o unem ao animal de companhia e a carga emocional que resulta dessa mesma perda.

Para o psicólogo Miguel Barbosa e o biólogo Ricardo R. Santos, investigadores no Núcleo Académico de Estudos e Intervenção sobre Luto, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, lidar com a perda de um animal de companhia, que é considerado um membro da família “pode ser tão ou mais difícil do que lidar com a perda de um amigo ou familiar”.  Acrescentam os investigadores que “tanto os estudos qualitativos e quantitativos, assim como a nossa experiência clínica na área de intervenção no luto por perda de animais companheiros, demonstram que a intensidade e a duração do luto por perda de um animal podem ser semelhantes (…) ao luto por perda de uma pessoa a quem se estava fortemente vinculado[2].

Não obstante, acontece que a legislação portuguesa não reconhece ao detentor do animal de companhia, entendendo-se, para o efeito da presente iniciativa, a pessoa indicada no registo do Sistema de Informação de Animais de Companhia (doravante SIAC), o direito a faltar justificadamente ao trabalho por motivo de morte ou de assistência urgente ao animal de companhia entregue aos seus cuidados.

Isto apesar de, com a alteração ao Código Civil operada em 2017, com a Lei n.º 8/2017, Portugal ter reconhecido que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.” (artigo 201.º-B do Código Civil). Daqui, bem como do previsto no Artigo 1305.º-A (“Propriedade de animais”), decorrem deveres para quem detém um animal de companhia, incluindo a prestação de cuidados médico-veterinários, para mais quando urgentes e inadiáveis.

Com efeito, prevê o artigo 1305.º-A o seguinte:

“1 – O proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie e observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e proteção dos animais e à salvaguarda de espécies em risco, sempre que exigíveis.

2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o dever de assegurar o bem-estar inclui, nomeadamente:

a) A garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão;

b) A garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profiláticas, de identificação e de vacinação previstas na lei.

3 – O direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte(sublinhado nosso).

Assim como o Código Civil, no seu artigo 493.º-A dispõe que “no caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal”.

A norma transcrita, ao referir-se a “desgosto ou sofrimento moral”, reconhece expressamente que a perda do animal de companhia comporta necessariamente sofrimento para o seu detentor e agregado familiar.

Conforme refere Walsh[3], a perda de um animal de companhia pode ser profunda e, tal como acontece com outras perdas consideradas significativas, o luto pode ser intenso e o processo correspondente pode ser lento e difícil. Acrescenta o estudo que cerca de 85% das pessoas relatam sintomas de luto na morte de um animal de estimação e mais de um terço têm um luto contínuo aos seis meses algumas pessoas experienciam o processo de luto de forma tão dolorosa como se se tratasse da perda de um membro da sua família.

Acontece que enquanto o luto por um familiar ou amigo é compreendido, inclusivamente no local de trabalho, e os mecanismos sociais de apoio garantem essa mesma compreensão em todas as fases do luto e tornam a experiência menos dolorosa, no luto que se vive por um animal de estimação é, muitas vezes, desconsiderado.

Mas hoje, cada vez mais psicólogos e detentores abordam a questão e pretendem sensibilizar para este sofrimento de perda, sendo que alguns psicólogos referem que “muitos dos seus clientes aproveitam a morte de familiares para poder falar da morte dos seus animais de estimação, como se quisessem desculpar-se por abordar o assunto e pelos sentimentos que essa morte lhes causa”.[4] Referem assim que “muitos questionam-se e culpam-se por sentirem mais a morte do seu pet do que de um familiar. Mas para estes especialistas esse sentimento de culpa ao perder um animal de estimação não deve existir já que ao perder um animal de estimação o seu dono vai atravessar as diferentes etapas que caracterizam o luto normal, ou o chamado “luto saudável”, sentido quando morre alguém de quem gostamos”[5].

Demonstrativo da necessidade de apoio sobre este tema é o exemplo do serviço de apoio gratuito criado pela Blue Cross, no Reino Unido, para donos que perderam os animais de estimação chamado Pet Bereavement Support que tem vindo a registar anualmente um aumento significativo do número de contactos. Algo que, ainda que este processo tenha vindo a suscitar interesse e maior compreensão, não existe suficiente apoio para os detentores.

Em famílias com crianças, este momento pode tornar-se particularmente importante e impactante, na medida em que pode ser a primeira vez que a criança lida com a perda.

Porém, e apesar de tudo o que vai exposto, os detentores vêem-se obrigados a justificar o seu luto perante a entidade patronal e a solicitar dias de férias – ou mecanismo semelhante – para recuperar a perda ou para acompanhar alguma urgência médico-veterinária.

Isto porque incumbe aos detentores dos animais de companhia a prestação de cuidados médico-veterinários, podendo, em caso de omissão, incorrer o detentor em responsabilidade contraordenacional ou até criminal.

Desta forma, pelo presente projeto de lei, o PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA pretende alterar o Código do Trabalho, bem como a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, prevendo que seja possível ao detentor do animal de companhia faltar justificadamente ao trabalho não só em caso de falecimento do seu animal, como em casos de assistência inadiável e imprescindível, em caso de doença ou acidente urgente do mesmo.

Para os efeitos da presente iniciativa, o trabalhador que tem direito a faltar justificadamente será aquele sob o qual, obrigatoriamente, incide o registo do animal em apreço junto do SIAC.

Mais se acrescenta, que, para os devidos efeitos, se aplicarão as normas de bem-estar animal, de acordo com o enquadramento legal vigente, inclusivamente no Decreto-Lei n.º 314/2003, que prevê a limitação do alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, e que condiciona o mesmo à existência de suas boas condições e ausência de riscos hígio-sanitários. Este diploma, tendo como objetivo minimizar riscos de insalubridade ambiental e doenças transmissíveis ao homem, no presente caso significará a garantia de que o trabalhador não tem a seu cargo mais do que a lei permite alojar nos prédios urbanos, nomeadamente até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais. Exceto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos, garantindo, concomitantemente, o respeito por esta norma e a limitação do direito que se pretende atribuir com a presente proposta.

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, a abaixo assinada Deputada Única do PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA, apresenta o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Objeto

A presente lei aprova o regime de faltas justificadas ao trabalho por motivo de morte ou  assistência a animal de companhia, alterando, para o efeito, o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.

Artigo 2.º

Aditamento ao Código do Trabalho

É aditado o artigo 252.º-A ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua atual redação, com a seguinte redação:

                                                         “Artigo 252.º-A

                Falta por motivo de morte ou assistência a animal de companhia

1 – O trabalhador tem direito a faltar justificadamente a um dia de trabalho por morte de animal de companhia que se encontre registado no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) em seu nome.

2 – O trabalhador tem direito a faltar ao trabalho até 5 dias por ano para prestar assistência inadiável e imprescindível, em caso de doença ou acidente, a animal de companhia registado no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) em seu nome.

3 – Para justificação da falta, o trabalhador deve efetuar prova do caráter inadiável e imprescindível da assistência ou declaração comprovativa da morte do animal de companhia, emitida por entidade competente, nomeadamente pelo médico veterinário ou a entidade onde foram prestados os cuidados médico-veterinários ao  animal.

4 – Para os efeitos do previsto no presente artigo, deve considerar a limitação prevista no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de dezembro, não podendo ser excedido o número total de animais aí previsto.»

Artigo 3.º

Alterações ao Código do Trabalho

É alterado o artigo 249.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que passa a ter a seguinte redação:

“Artigo 249.º

[…]

1 – […].

2 – […]:

a) […];

b) A motivada por falecimento de cônjuge, parente ou afim, nos termos do artigo 251.º, bem como a motivada por morte de animal de companhia nos termos do artigo 252.º-A;

c) […];

d) […];

e) A motivada pela prestação de assistência inadiável e imprescindível a filho, a neto ou a membro do agregado familiar de trabalhador, nos termos dos artigos 49.º, 50.º ou 252.º, respetivamente, bem como a motivada para assistência a animal de companhia, nos termos do artigo 252.º-A;

f) […];

g) […];

h) […];

i) […];

j) […];

k) […].

3 – […].”

Artigo 4.º                            

Alterações à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas

É alterado o artigo 134.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, o qual passa a ter a seguinte redação:

“Artigo 134.º

[…]

1 – […].

2 – […]:

a) […];

b) As motivadas por falecimento do cônjuge, parentes ou afins, bem como de animal de companhia nos termos do artigo 252.º-A do Código do Trabalho;

c) […];

d) […];

e) A motivada pela prestação de assistência inadiável e imprescindível a filho, a neto ou a membro do agregado familiar do trabalhador, bem como para assistência a animal de companhia nos termos do artigo 252.º-A do Código do Trabalho;

f) […];

g) […];

h) […];

i) […];

j) […];

k) […];

l) […];

m) […];

n) […].

3 – […].

4 – […]:

a) […];

b) […];

c) […].

5 – […].

6 – […].”

Artigo 5.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, Palácio de São Bento, 7 de dezembro de 2022

A Deputada,

Inês de Sousa Real


[1] Annual report | FEDIAF (europeanpetfood.org)

[2] “Não sabia que se chorava por um cão.” A perda de um animal de companhia | Pet | PÚBLICO (publico.pt)

[3] Cfr. Walsh (2009), Human-Animal Bonds II: The Role of Pets in Family Systems and Family Therapy

[4] Perder um animal de estimação: um luto que deve ser feito (e-konomista.pt)

[5] Idem