AnimaisParlamento

Regula a contenção e treino de animais de companhia, vedando a comercialização e utilização de “coleiras de choque” e de “coleiras estranguladoras”

Exposição de motivos

Em Portugal, encontram-se à venda, em vários estabelecimentos comerciais, coleiras elétricas para cães, também designadas “coleiras de adestramento”, “coleiras de choque” ou “e-collars” que, alegadamente, têm por função a “contenção” dos animais e o seu treino.

A par deste tipo de dispositivos eletrónicos, existem outro tipo de coleiras para animais, designadas “coleiras estranguladoras” e “coleiras de picos” que têm por objetivo impedir que os cães puxem a trela quando passeiam e que podem provocar dor, lesões e outro tipo de problemas nos animais que são sujeitos a este tipo de instrumentos.

No caso das coleiras eletrónicas, o produto consiste numa coleira com um dispositivo, geralmente alimentado por pilhas de lítio, que produz um estímulo elétrico no pescoço do animal, de intensidade variada, como forma de controlar o seu comportamento. O dispositivo é controlado por rádio e incorporado na coleira. Alguns modelos também produzem sons ou vibrações, como alternativa ou em conjunto com o choque elétrico. Outros incluem integração com recursos de mapeamento e GPS para controlar o animal no perímetro de residência ou para o localizar.

Estes dispositivos são usados há várias décadas, mas têm vindo a proliferar em lojas de artigos para animais e em lojas online nos últimos anos, sem que exista a devida regulamentação que acautele a saúde e o bem-estar dos animais.

São instrumentos usados para treino comportamental e contenção de animais de companhia, embora existam outros métodos consensuais que substituem, com vantagens e sem riscos lesivos, o recurso a este tipo de dispositivos – como é o caso do comum treino através do reforço positivo.

Segundo um importante estudo conduzido por um Grupo de Investigação em Comportamento Animal, Cognição e Bem-Estar da Universidade de Lincoln, no Reino Unido, publicado a 22 de julho de 2020[1], concluiu-se que o treino de cães através do reforço positivo é mais eficaz do que o recurso às coleiras elétricas (“e-collars”), para além de apresentar menos riscos ao bem-estar do cão e à qualidade da relação deste com o seu detentor. Mais se concluiu que não há evidências que indiquem que o treino com esses dispositivos seja necessário.

Já anteriormente, outras pesquisas científicas apontavam no mesmo sentido, designadamente, segundo um estudo[2] publicado em 2014, solicitado pelo governo britânico,      concluiu que “os efeitos imediatos do treinamento com uma coleira eletrónica dão origem a sinais comportamentais de angústia em cães”, além de que “não resultou numa resposta substancialmente superior” a outras formas de treino. O mesmo estudo conclui ainda que “o uso rotineiro de coleiras eletrónicas, mesmo de acordo com as melhores práticas (conforme sugerido pelos fabricantes de coleiras), representa um risco para o bem-estar dos cães”. Daí que, no Reino Unido, a 28 de novembro de 2022, representantes do The Kennel Club, Dogs Trust, RSPCA, Battersea Dogs & Cats Home, British Veterinary Association e Blue Cross juntaram-se aos parlamentares, em Westminster, para pedir ao governo que proíba o uso de Shock Collars (ESC), conforme prometido desde 2018.

As evidências apresentadas aos governos do Reino Unido levaram a que coleiras que administram choques elétricos fossem proibidas no País de Gales e condenadas na orientação escocesa. Em 2018, o governo de Westminster comprometeu-se a introduzir a proibição.

Para ter efeito, o choque administrado pelos ESCs precisa ser forte o suficiente para que o cão sinta dor e tenha medo de sentir aquela dor novamente. Também exige que o cão associe o choque à sua ação indesejável. Criar medo desta forma arrisca inúmeras consequências negativas para o cão e para o detentor. A saber:

  • Os cães podem associar a dor a outros fatores no seu ambiente, como outros cães ou pessoas, e aprender a evitá-los ou a ser agressivos com eles;
  • Os cães podem não associar o choque a nada e ficam ansiosos com a situação mais ampla em que a coleira é usada. Eles podem evitar passear, ser muito inativos nas caminhadas ou ficar perto de seu dono por causa da ansiedade;
  • Podem tornar-se agressivos ou evitar os seus detentores em resposta imediata à dor ou para evitar choques adicionais (por exemplo, quando a coleira é colocada);
  • Quando o choque é usado em situações em que os cães já estão ansiosos (por exemplo, por ladrar ou atacar), é provável que isso aumente a ansiedade, levando potencialmente a comportamentos indesejados;
  • O uso da coleira pode causar lesões físicas ao animal.[3]

Estudos realizados nos Estados Unidos na década de 1980 já revelavam que as “coleiras de contenção de latidos” se mostraram sensíveis a outros ruídos (que não o latido dos cães), acabando por resultar em queimaduras graves e outro tipo de lesões nos animais.

Ora, esse tipo de coleiras, que são inegavelmente perigosas, encontra-se atualmente à venda em muitos estabelecimentos comerciais em Portugal, incluindo nas vendas à distância, de forma completamente livre e massificada, apesar dos constantes protestos de grande parte da população.

Segundo a descrição apresentada por alguns comerciantes nas suas lojas online, as coleiras eletrónicas permitem controlar os “latidos intempestivos” dos cães e a sua circulação dentro de um determinado perímetro.

Alguns comerciantes, aconselham a “não deixar a coleira colocada no cão mais de 8h por dia”, alegadamente prevenindo danos físicos para os animais, desconhecendo-se a base científica para sustentar esta recomendação ou os respetivos critérios, nomeadamente para estabelecer esse tempo máximo de utilização.

Além de que, mesmo que essas “regras e alertas de utilização” fossem adequados a prevenir lesões físicas nos animais – o que é altamente questionável e não evita as demais consequências -, resulta também evidente a impossibilidade de fiscalizar a “correta” utilização desse tipo de coleiras em conformidade com os mesmos.

O facto é que existem abundantes queixas de lesões efetivas nos animais, algumas delas graves, produzidas pelo uso deste tipo de dispositivos.

O uso destas coleiras, além de ser perfeitamente dispensável no processo de treino de cães, conforme maioritariamente afirmado por investigadoras, e treinadores e treinadoras de animais, podem provocar outras complicações, documentadas cientificamente e supra expostas, como medo, comportamentos agressivos, comportamentos obsessivo-compulsivos, deterioramento do relacionamento com a pessoa, extrema ansiedade, fobia ambiental, entre outros, não devem esses dispositivos incluir a opção dos choques elétricos.

No caso das “coleiras estranguladoras” e das “coleiras de picos”, existem também vários estabelecimentos que comercializam este tipo de produto, apesar dos elevados riscos para a saúde e segurança dos animais.

Essas coleiras têm por objetivo anunciado melhorar o controlo dos animais durante a respetiva condução. Contudo, podem provocar lesões graves ou mesmo a asfixia dos animais.

Tal como vem sendo alertado por especialistas em treino de cães[4], a eficácia (na perspetiva do controlo) desse tipo de coleiras “estranguladoras” implica que as mesmas se devam tornar aversivas, isto é, que causem medo, desconforto ou dor, de forma a que o animal o queira evitar. Ou seja, esses dispositivos têm de causar dano ou dor para funcionarem, o que constitui uma evidência científica.

A omissão de previsão legal expressa relativamente a esses equipamentos de utilização perigosa e os danos que vêm causando nos animais, afetando claramente, de forma injustificada e desnecessária, o seu bem-estar, motiva sérias preocupações em relação à sua livre comercialização e utilização no nosso país.

Nunca é demais recordar que, por força do disposto no artigo 201.º-B do Código Civil, os animais gozam hoje de um estatuto civil que os reconhece como seres sensíveis e dignos de proteção jurídica em virtude dessa sua natureza.  Por sua vez, os n.ºs 1 e 3 do artigo 1305.º-A dispõem que “o proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie” e que “o direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos”.

No que respeita às “coleiras de picos”, a Lei de Proteção dos Animais (Lei n.º 92/95, de 12 de setembro), estabelece, na alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º, que são “proibidos os atos consistentes em utilizar (…) outros instrumentos perfurantes, na condução de animais, com exceção dos usados na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei”.

Ora, as “coleiras de picos” são evidentemente instrumentos perfurantes, já que se destinam precisamente a penetrar na pele do pescoço do animal.

Para além das citadas normas aplicáveis, o Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, que aprovou as normas de execução da Convenção Europeia para a proteção dos animais de companhia, dispõe no n.º 3 do artigo 7.º que “são proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal”,  factos que poderão mesmo consubstanciar um crime de maus tratos, previsto e punido pelo n.º 3 do artigo 387.º do Código Penal.

Por sua vez, o n.º 3 do artigo 13.º do citado Decreto-Lei n.º 276/2001 impõe que, “quando houver necessidade de recorrer a meios de contenção, não devem estes causar ferimentos, dores ou angústia desnecessários aos animais”.

O que nos leva a concluir que a prática corrente de comercialização e utilização dos instrumentos de que aqui tratamos afronta os regimes jurídicos vigentes em matéria de proteção dos animais, em geral, e dos animais de companhia, em particular.

Importa, por isso, aclarar o tipo de dispositivos inaceitáveis para a contenção e treinamento de animais de companhia, em obediência aos princípios e normas jurídicas vigentes, de forma a assegurar o bem-estar dos animais de companhia e, simultaneamente, garantir, nesse âmbito, a coerência normativa e a segurança jurídica dos detentores destes. 

Por fim, torna-se igualmente necessário incluir no elenco de contraordenações, previsto pelo citado Decreto-Lei n.º 276/2001, o maneio de animais de companhia em violação das regras respetivas aí previstas. Lacuna de que se dá conta e que se impõe suprir, sendo certo que apenas se prevê a situação mais grave de “maneio e treino dos animais com brutalidade, nomeadamente [com] pancadas e pontapés” (cf. artigo 68.º do referido diploma legal).

Nestes termos, a abaixo assinada Deputada Única do PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, apresenta o seguinte Projeto de Lei:

 Artigo 1.º

Objeto

A presente lei regula a utilização de dispositivos destinados à contenção e treino de animais de companhia, vedando a comercialização e utilização de coleiras suscetíveis de lhes causar dor, lesões e stress, e atualiza o elenco de contraordenações, procedendo à décima alteração ao Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro.

Artigo 2.º

Alteração ao Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro

Os artigos 13.º e 68.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, passam a ter a seguinte redação:

«Artigo 13.º

[…]

1 – […]

2 – […]

3 – […]

4 – […]

5 – Quando houver necessidade de recorrer a meios de contenção ou de treino, não devem estes causar ferimentos, dores ou angústia desnecessários aos animais. 

6- É, designadamente, proibida a comercialização, detenção e/ou utilização de coleiras que impliquem ou possam causar dores, lesões e angústia desnecessários aos animais, tais como coleiras com dispositivos eletrónicos, destinados a provocar estímulos, choques e ou vibrações elétricas, bem como coleiras estranguladoras ou com picos interiores.

Artigo 68.º

[…]

1 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) […]

f) […]

g) […]

h) […]

i) […]

j) […]

k) […]

l) […]

m) O maneio e/ou contenção de animais de companhia em desrespeito das condições fixadas no presente diploma.

2 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) […]

f) […]

g) […]

h) […]

3 – […]

4 – […]

5 – […]

6 – […]»

Artigo 3.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Palácio de São Bento, 02 de janeiro de 2023

A Deputada,

Inês Sousa Real


[1] O referido estudo pode ser consultado em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fvets.2020.00508/full

[2].:https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0102722#pone.0102722-Companion1

[3] Call for end to Shock Collars | The Kennel Club

[4] Cf., nomeadamente, https://www.publico.pt/2016/09/29/p3/cronica/coleiras-estranguladoras-nao-e-possivel-treinar-um-cao-sem-causar-dor-1826728